sexta-feira, 27 de maio de 2011

TÉCNICAS DE SOBREVIVÊNCIA EM APS – DONA CONCEIÇÃO

Acompanharemos hoje um dia na vida de Dona Conceição, servidora pública, trabalhando  há quase trinta anos  na Previdência Social, onde ocupa o cargo de técnico do seguro social. Segunda-feira, dia especialmente nefasto para todos os trabalhadores, que acordam ainda com os restos do domingo nos olhos, está Dona Conceição pronta para mais um dia de trabalho.
  -  Bom dia, seu José! – diz Dona Conceição, com habitual alegria, depois de bocejar a preguiça do fim de semana.
- Bom dia –  respondeu o segurado, mal-humorado, rosnando as palavras.
- Eita, mau-humor de segunda – imaginou  a servidora.
- O senhor veio dar entrada na aposentadoria?
- Vim, sim – responde entre-dentes.
- Aí tem – pensa Dona Conceição, com a perspicácia que sua experiência lhe imprimiu, e seu pensamento assim continuou: Ele já passou por essa cadeira, não gostou do resultado obtido, voltou, deu novamente de cara com a sua algoz e ficou mais irritado ainda. Olhou melhor para o rosto dele e não o reconheceu. Menos mal, sinal de que o primeiro encontro deve ter corrido bem pois não lhe deixou traumas, aquele pânico que se sente ao ver de novo alguém com o qual tivemos uma séria desavença.
Pediu  seus documentos:
 - Tá tudo aí....
- Não disse? – confirmou ela, em pensamento. Pegou o número do beneficio indeferido e saiu em busca das carteiras profissionais do segurado. Não encontrou. Pediu para um estagiário procurar de novo. Nada. Ligou para o arquivo, pediu que trouxessem o processo. O homem  a olhava de modo agressivo e desconfiado, ela estava temerosa, alguma aprontara, sem dúvida. Chega o processo:
 – Senhor, seus documentos lhe foram devolvidos.
- Foram, nada, só me devolveram a carteira – e a joga com arrogância sobre a mesa.
- Hum – pensou Dona Conceição – Uma única e inofensiva carteira, que mal pode haver em tão pouco espaço? – recomeça a se animar.
Pega o processo para procurar onde está o erro cometido, sim, algo de muito grave deve ter ela feito para ele a olhar com essa cara de pitbull esfaimado.
- Hum – pensou quando viu que o beneficio fora indeferido há menos de três meses. Por que ele não tinha entrado com um pedido de recurso? Agora ela ia ter que habilitar de novo, retirar os documentos que poderiam ser aproveitados no novo processo, repetir todo o procedimento anterior, e seu humor foi lentamente se alterando, olhou para o segurado com o receio transmudado em irritação. Ele manteve o olhar desafiador, entretanto, ela percebeu um quase imperceptível recuo de seus ombros. Ela ganhava terreno. Mas estava chateada, por que ele não entrara com o pedido de recurso, tinha que vir fazer tudo de novo? Folheou o processo, com gestos bruscos.
- O quê?! –  indignou-se silenciosamente -já é a quarta vez que ele dá entrada numa aposentadoria!
- O quê?! -  gritou o seu pensamento ao rever aquele PPP de cinco páginas e 85 alterações de função, ia ter que colocar, no PRISMA, cada uma daquelas oitenta e cinco frações de um único emprego. Oitenta e cinco –  subitamente se recordara deste dramático ocorrido. Prosseguiu folheando o processo.
- O quê?! – gritava com uma desesperada mudez – depois de tudo isso e ele só tinha 30 anos de contribuição, ia ter que repetir tudo aquilo inutilmente.
.         Colocou o processo sobre a mesa com uma mão pesada de enfado e impaciência. Nada amistosamente olhou para ele, que, agora, depois dos maus tratados sofridos pelo seu processo de aposentadoria, parecia amedrontado, meio encolhido, tentando disfarçar sua presença.  Ela não disse nada, mudo também ficou ele mas houve uma compreensão  tácita da inversão de atitude entre ambos e, quando Dona Conceição entregou-lhe o protocolo do benefício e dele se despediu com um seco bom dia, ele respondeu, agora, educada e gentilmente: - Para a senhora também.

                                                    ***

Quando chegou a vez de Seu João ser atendido, Dona Conceição já estava novamente de bom humor. Seu João também era muito amável e não parecia nutrir ressentimentos contra ela ou contra a instituição. Tudo corria muito bem até que Dona Conceição pediu suas carteiras profissionais enquanto tentava pesquisar seus vínculos no CNIS, que, como de costume, caía a todo momento. De relance percebeu um volume bastante inusitado sendo colocado  na mesa, olhou melhor, havia uns 10 cm de CTPS, cuidadosamente empilhadas bem na sua frente. Ficou em estado de choque. Eram doze CTPS. Uma dúzia. Confirmadas todas pelas 9 páginas de CNIS, 115 vínculos, 93 extemporâneos. Seu João era  pedreiro, seus vínculos todos de curtíssima duração. Imaginou como seria longa e árdua sua tarde dividida entre os dois processo. Engoliu o desânimo, conseguiu sorrir ao se despedir de Seu João, porém, mal conseguiu almoçar.

À tarde, Dona Conceição,  um processo em cada mão, custou a se decidir entre Seu José e Seu João, acabou optando pelo segundo, com o qual passaria as quatro horas seguintes. Iniciou pela carteira mais antiga, semi-desfeita pelo tempo e pelo mofo, veio a coceira no nariz, colocou  luvas  e uma máscara e começou, com precisão cirúrgica, ananálise dos vínculos, cuidando para que a carteira não se deteriorasse ainda mais com o manuseio. E, a seguir, dedicou-se à segunda, à terceira.... Incrível. Não é que estava tudo certinho? Poderia convalidar todos os empregos do segurado. Então, durante três horas ficou a fazer a solicitação no CNISVR Agora só faltava encontrar uma alma caridosa disposta a responder a pesquisa no HIPNET. Aproximou-se do supervisor um tanto temerosa, pediu que ele homologasse os pedidos, ele abriu o sistema, rolou a tela até o fim, viu os 93 pedidos e declarou sucintamente: -Nem morto! E devolveu-lhe o processo. Ela resolveu mudar de estratégia, foi para a retaguarda e pediu a uma colega que fizesse as homologações e foi saindo de fininho. A moça lhe disse que assim que tivesse um tempinho, cuidaria de seu pedido. “Tempinho”, repetiu Dona Conceição, já então um pouco arrependida de seu ato. Voltou para sua mesa e começou a trabalhar no processo de Seu José e já tinha incluído uma dezena de períodos de PPP no PRISMA quando ouviu um grito de horror  vindo da outra sala. Era aquela sua colega que havia encontrado um tempinho para fazer as homologações dos vínculos de Seu João...



8 comentários:

  1. Hahahaha... 115 vínculos sendo 93 extemporâneos....
    ODEIOOOOO vínculos de construção civil...
    Massa DEMAIS...

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  2. Parabéns novamente.
    Por mais trabalhoso que seja atender o "Seu João" ainda vai, o pior é aquele requerente (muitas das vezes nem segurado é, ou nunca foi - os "rurais") que acha que tem 35 anos de contribuição só porque seu primeiro emprego foi em 1976. Ele sofre de uma forte amnésia que apagou de sua mente todos os períodos em que esteve desempregado e não contribuiu. Se nega a reconhecer que há 3 meses atrás uma contagem oficial somou 19 anos e não 35 e julga mais fácil fazer um novo pedido já que tentou preencher um formulário de recursos mais não encontrou em sua mente um argumento sequer que justificasse tal pedido.
    Para piorar nas APS do interior é comum a típica requente a “Dona Maria” típica dona de casa do subúrbio que nunca em sua vida toda pagou um carnê e ao completar 55 anos de idade agenda – através de um intermediário profissional – uma aposentadoria por idade rural e alega a trabalhar como bóia-fria há exatamente 15 anos. Durante a entrevista também sobre de forte amnésia e não se lembra do nome de nenhum patrão nem em que época do ano o milho é plantado.
    Para foder o dia do servidor, ao final da habilitação, com o requerimento em mãos, pede educadamente para o requerente assiná-lo e aí vem a pergunta clássica: Meu nome?
    E o servidor já arrependido de ter prestado o concurso público não pode responder o que gostaria: Não, o meu nome.

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  3. E o servidor já arrependido de ter prestado o concurso público não pode responder o que gostaria: Não, o meu nome. O INSS é um estímulo para os meus estudos, pra mim sair dele!

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  4. Ontem passei à tarde incluindo os vínculos do seu José que em determinadas empresas trampou 2 dias kkkkkk, já não aguentava mais, procurar CEP de endereços que nem existem mais. Daí entreguei a minha Supervisora, q qdo viu o proc me olhou tão desanimada, o bracinho dela tão fininho esta envolto de emprasto p/dor, fiquei sem graça, mas vai fazer o que? Téc Seg Social sofre! rsrsrsrsrsrs

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  5. Nuuuuuuooooooooooossa!!!
    CNIS de trabalhador da construção civil é tarefa pesada. Só chega perto disso um M.E. pescador. CIR, CIP, as vezes CTPS, certamente esmilinguidas, e conversão de tempo a cada 30 dias.
    Agora, existe segurado mais irritado e grosseiro que bancário, com seus 978 vinculos extemporâneos, remunerações espalhadas pelos 4 cantos do planeta, sem DUT, requerendo B31 sem nenhum documento e pendente de tratamento?

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  6. Versão alternativa do "EU SERVIDOR"!
    Gostei! Gostei! Gostei! Gostei!
    Obrigada!
    Mas devo efetuar uma correção. O seu José, na segunda vez contratou um "CONHECIDO" daqueles que não tem procuração, não tem OAB, não tem ficha limpa e que faz mais pergunta que o próprio interessado... ;)

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  7. Gostou da homenagem, né, Dona Conceição?
    Rio demais com seus comentários, cada qual mais
    inssano e não poderia deixá-la de fora do Manual.
    Semana que vem tem mais Dona Conceição em ação.....se prepare...uhauahuahu

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  8. kkkkk muito bom, esses dias peguei um com 7 folhas de cnis :(
    afffffffffffffffffffff

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