Para Dona Conceição, bem como para a maioria dos trabalhadores, a semana se divide em quatro aborrecidas segundas-feiras e uma auspiciosa sexta-feira, prenúncio de um promissor fim de semana. E foi numa segunda-feira de muita chuva que Dona Conceição, sonhando em comprar um carro, tentava achar uma vaga para estacionar o seu velho fusca. Pegar ônibus num dia desses, nem pensar, e lá vai ela, procurando uma vaguinha para economizar no estacionamento. E lá vai ela, vai indo, atenta ao trânsito, cada vez mais distante de seu objetivo principal. Pronto, finalmente, encontra um espaço que, com boa vontade e um tanto de perícia, pode ser considerado uma vaga; esbarra no carro da frente, bate no de trás, enfim, estacionada!
- Onde estou? - perguntou-se ela, olhando para todos os lados, tentando se orientar em meio a tantos guarda-chuvas. Em que direção ficava a APS?
- Ó céus! – gritou quando se deu conta de onde se encontrava. Olhou o relógio e correu para o ponto de ônibus mais próximo. Estava a uns quinze quilômetros de seu local de trabalho. Vir de carro acabou por não a livrar de tomar um ônibus. Lotado, claro.
Depois de quarenta e cinco minutos de aperto, quando tentava marcar o ponto sem ser notada, o chefe, que tudo vê, pois é essa a sua função e não outra, assim a cumprimentou, sem disfarçar a ironia:
- Boa tarde, Dona Conceição – e não eram nem dez horas de manhã...
- Engraçado - pensou ela – quando fico até mais tarde trabalhando ou detida por alguma reunião de última hora, ninguém me dá boa noite...
A pontualidade tem dessas inconvenientes sutilezas.
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- Bom dia, Dona Felicidade! A senhora veio dar entrada na aposentadoria?
- Não sei. – respondeu Dona Felicidade, com voz lamuriosa.
- Foi isso que a senhora agendou. Ou a senhora quer saber apenas quanto tempo de contribuição tem?
- É, vê pra mim... eu ando tão cansada, acho que estou doente, deve ser a idade. – lamentou-se ela, enquanto colocava sobre a mesa umas carteiras profissionais antigas e uma meia dúzia de carnês recentes. Dona Conceição analisou aquele material antigo, uma dúzia de vínculos a serem incluídos no sistema, avaliou que talvez tivesse tempo suficiente para aposentá-la.
- Vamos dar entrada, quem sabe se a senhora já tem tempo para se aposentar.
- A senhora não tem certeza?
- No momento, não, mas, à tarde, eu vou poder ver isso com calma.
- Ah! – suspirou a infeliz Dona Felicidade - E eu vou ter que continuar pagando o carnê?
- A senhora espera a resposta que talvez não precise pagar mais. Já pagou esse mês, pode aguardar até dia 15 do próximo mês. Até lá a senhora já vai ter a resposta.
- Eu gosto de deixar para pagar no último dia. Eu tenho medo de ficar doente e não pagar. – E começou a desfiar um rosário de mazelas e infortúnios.
Dona Conceição, que já estava ficando deprimida de tanto ouvir as lamúrias da segurada, decidiu finalizar o processo durante o atendimento, apesar de já ter outros agendamentos à espera. Queria minimizar a distância entre o nome e o ânimo de Dona Felicidade. Enquanto a outra lastimava excessivos e provavelmente inexistentes dramas, ela analisou detidamente a carteira, incluiu os vínculos no sistema, conferiu as datas, conferiu novamente, conferiu a contagem do tempo, não confiava muito nas informações do Prisma, deu tempo! Concedido!
- Dona Felicidade, a senhora está aposentada! – disse Dona Conceição satisfeita em dar a boa notícia.
- Estou? – perguntou incrédula e um tanto decepcionada Dona Felicidade.
- Está! – respondeu Dona Conceição, confusa com o desânimo da segurada. Estaria em estado de choque? Que mulher complicada. O que mais poderia fazer para contentá-la? – pensava a servidora.
– Bom, agora vou fazer uma cópia de suas carteiras e já volto.
Ao voltar encontrou a segurada ainda mais angustiada que antes.
- Eu vou perder a minha pensão?
- Ah, é isso que está preocupando a senhora? Claro que não. Fique tranqüila.
- Tenho que continuar pagando o carnê?
- Também, não. Agora a senhora está aposentada. Nada de pagar mais, agora é só aproveitar o que a senhora batalhou para conseguir.
- Mas se eu parar de pagar e ficar doente, vou poder ficar de auxílio doença?
- A senhora, estando aposentada, não faz mais jus ao auxilio doença, nem mesmo continuando a contribuir para a Previdência. – esclareceu Dona Conceição.
- Então eu acho que vou esperar mais um pouco para me aposentar, posso?
- Pode, Dona Felicidade, pode. Basta fazer, por escrito, um pedido de cancelamento do seu benefício – respondeu aborrecida, Dona Conceição. Tanto trabalho para nada!
- Então, me arranja um pedaço de papel?
Dona Conceição levantou-se para pegar o papel. Era ainda a primeira segunda-feira da semana, chovia, seu fusquinha estava a quinze quilômetros de distância e ela ainda tinha que agüentar as desventuras de Dona Felicidade.
Isso já me aconteceu umas 3 vezes. Acabo de conceder e o segurado não gostou do valor da renda mensal e desiste de se aposentar depois de já estar aposentado. Dá uma raiva!
ResponderExcluirParabéns, ótima crônica.
ResponderExcluirÓtima crônica, entretanto, faz-se imprescindível um questionamento semi-sarcastico:
ResponderExcluirSeria, uma semana de trabalho no NS composta por quatro segundas, uma sexta, um sábado e um domingo?
Sobre segurados indecisos: eu odeio, realmente odeio com boa parte de minhas energias não consumidas pelo cliente do atendimento anterior, situações em que após perguntar 347 vezes o que o infeliz deseja; tentar consultar sem sucesso o CNIS por ao menos 95 vezes; ter a sorte de não haver jogo entre Brasil e Austrália no cadastro, ambos com camisas amarelas; concluir o processo durante os 30 minutos que aparecem na televisão, e depois ainda ouvir do "filho de boa mãe": "Ah eu não queria me aposentar, só queria saber quanto tempo falta pra me aposentar, pode desistir?"
Só nesses momentos e só mesmo nesses, eu tenho muita vontade de possuir uma máquina para desferir choques de modo habitual e não intermitente na cabeça de pessoas...