sexta-feira, 17 de junho de 2011

TÉCNICAS DE SOBREVIVÊNCIA EM APS – A SOBRANCELHA


Em meio a uma alta densidade demográfica de segurados que aguardavam atendimento, a voz mais elevada se destacava gritando repetidamente “só matano mermo mermão!”. Dona Conceição, que acabara de retornar do almoço, olhou para a multidão tentando descobrir o autor da aliterada oração, aqui no sentido gramatical e não no devocional, a fim de facilitar o entendimento daquelas três últimas palavras da frase de quatro, e que não constavam de seu ultrapassado léxico, porém, que já devem estar presentes nas atualíssimas cartilhas do MEC.
Ainda sem entender o significado da locução, chamou o próximo, com uma inquietante intuição de que seria brindada com a aquela vociferante prenda. Não deu outra. Seu Jorge, já grande e pesado por natureza, se aproximava imprimindo agressividade a cada passo, fazendo tremer o mouse que, desta forma, parecia assustado por tão ameaçadora presença. Ele, para se sentar, puxou a cadeira com tamanha violência que ela balançou para trás, com o impulso,  quase atingindo um cidadão que estava sentado nas proximidades. Dona Conceição não estava gostando nem um pouco desse  violento preâmbulo mas afivelou sou mais cordial sorriso amarelo, e disse, quase amável:
- Boa tarde, Seu Jorge, o senhor veio dar entrada na sua aposentadoria?
- Vim, dona, e, dessa vez, eu me aposento de qualquer maneira, senão a coisa vai ficar muito feia pro seu lado.
A sobrancelha esquerda de Dona Conceição ergueu-se interrogativamente. É necessário que se faça aqui um parêntese para explicar o funcionamento da sobrancelha esquerda de Dona Conceição. Calejada por décadas de atendimento, a servidora adquirira uma expressão facial neutra que não deixava transparecer sentimentos que ela julgava que poderiam ser prejudicais à sua tarefa, como desagrado, desaprovação, tensão ou medo. Ou era espontaneamente gentil e simpática, ou, em casos extremos, como o de agora, mantinha-se indiferente. O único senão era a indomável sobrancelha que parecia ter personalidade própria, erguendo-se a cada sobressalto, feito um marcador de nível.
- Ah, o senhor já deu entrada antes?
- Três vezes!
Três vezes só este ano, confirmou Dona Conceição ao ver o histórico do cidadão. E ainda estamos em junho. Mais duas vezes ano passado, mais outra no anterior, num total de seis tentativas. Tinha razão em estar revoltado. A menos que não tivesse tempo de contribuição suficiente para se aposentar, como, por coincidência, era o caso, conforme se certificou ao examinar o último pedido negado. O segurado tinha 49 anos de idade, 25 de contribuição e uma dúzia de PPPs não enquadrados. Precisava de 35 anos redondinhos de contribuição já que não tinha idade para a proporcional. Dona Conceição respirou fundo e começou a explicar que os PPPs não tinham sido enquadrados, que ele precisava....foi interrompida...
- Dona, eu trabalho desde os onze anos, dou duro há mais de quarenta  ( há aí um erro de cálculo,  pensou Dona Conceição) e agora vocês vêm me dizer que eu não tenho direito de me aposentar?! – começou a esmurrar a mesa, com aparente intenção de socar algo mais macio, como, por exemplo, as rechonchudas bochechas de Dona Conceição. A sobrancelha esquerda sinalizou o temor erguendo-se mais um pouco. Ela se calou e pôs-se a habilitar o benefício. Ele continuou a falar em voz alta e ameaçadora, respingando perdigotos sobre a mesa.
- Eca! Que nojo! – e a sobrancelha elevou-se mais um pouco.
O silêncio e a aparente tranqüilidade da servidora apenas serviram para alterar ainda mais o irritado requerente.
-896=fhc a dona aí não vai falar nada? Vai ficar com essa  eiagçcb
de cara de  eiagçcb - gritava ainda  quando  se levantou, arrancou o monitor da frente de Dona Conceição e o lançou ao chão.
A sobrancelha de Dona Conceição alcançou um patamar nunca antes atingido, subiu tanto que levou consigo o olho e entortou a boca, fazendo seu rosto lembrar uma obra de arte cubista e ela, em total silêncio, erigiu  impropérios e citou todos os palavrões conhecidos e os ainda por inventar, por minutos odiou aquele ser com toda a liberdade de seu espírito e recompensada o viu ser levado para longe de sua presença. Depois teve um momento de arrependimento durante o qual se perguntou se tinha infringido algum artigo do Código de Ética do Servidor Público com as suas palavras, com o seu silêncio ou com o conjunto de sua atitude. Tranqüilizou-se ao certificar-se que não e que os seus sentimentos, provocados pelo procedimento do segurado, embora negativos  eram naturais e permitidos, pois, a dita legislação, que normatiza a conduta do servidor, determina apenas como ele deve agir e não regulamenta suas emoções e sensações pontuais. Aliviada, deixou escapar um alto e sonoro palavrão que, por sorte, ninguém prestou atenção e ficou a cismar se não era já tempo de se elaborar um Código de Ética do Cidadão Segurado...

6 comentários:

  1. Esse texto é o melhor de todos!

    Gostei bastante!

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  2. Muito bom. Parabéns novamente.

    É praticamente impossível o cidadão não personalizar o Estado na figura do servidor. E quem sobre com este erro é o servidor e não o Estado, por isso o INSS deveria mudar a forma de atendimento.
    O requerimento funcionaria da seguinte forma:

    1. Preenchimento do requerimento via internet;
    2. Pagamento de um GPS, referente a uma taxa, exemplo: habilitação: 50,00; recurso à JR: 150,00; recurso à Caj: 250,00.
    3. Todos os documentos autenticados em cartório,
    4. Entrega via Correios.

    Após o prazo de 30 dias receberia a resposta via Correios,

    Caso tivesse sue pedido deferido o valor da taxa seria restituída na primeira competência do benefício.
    Caso fosse negado o pedido, saberia que é bom pensar ($$$) antes de pedir algo que não tem direito.

    É essa cultura de que tudo é de graça que deixa o INSS com uma má impressão.

    Cobrar caro é a única maneira de o cidadão fazer uma simulação antes de dar entrada na aposentadoria e não ficar fazendo um pedido por mês. Com isso se evitaria tantos pedidos desnecessários.

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  3. Excelente crônica, excelente sugestão do nosso amigo ANÔNIMO!!!

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  4. 1 - Estou no foco... Seria assédio moral? d(o.Ô)b Hahahahahahah!

    2 - Coleguinha anônimo, Deus nos livre e nos guarde de cobrar taxa de requerimento!
    Dá muita vontade, mas não pode.
    Inicialmente por conta do art. 5° da CF 88. Depois tente imaginar o pacato e amável Dr Bruce Banner... Após a taxa e o indeferimento, ele seria definitivamente o HULK verde de ódio! rsrsrsrs
    3 - Sobre segurança contra os HULK's, os detectores de metais comprados a uma taxa módica, quase uma doação (SIC), funcionam em algum lugar do pais? Levante a mão quem trabalha em APS que possui dector de metais funcionando, por favor...
    4 - Meu recorde foi uma pessoa que todo mês, fazia 6 meses, tinha um b41 indeferido. Essa era a 7ª e passei os 30 minutos previstos para o atendimento explicando o que era a aposentadoria e como funcionava enquanto tratava o requerimento. No fim eu perguntei, a senhora entendeu? Ela disse sim, eu entreguei a carta de indeferimento, e ela perguntou: - posso dar entrada no mês que vem novamente?
    Uma hora dessa só resta é rir mesmo...

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  5. Gostei muito!!!

    Sugestão:
    _ Pericia médica de servidor
    _ LOAS ( declaração de separação de fato)

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  6. Parabéns pelo texto
    tbm tenho sugestões:
    Sindicato...
    Tempo de atendimento x qualidade de atendimento(+ despachos)x sistema instável x segurado que nao deixa pensar rsrs

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