Foi no verão que Dona Conceição começou a usar um chapéu de palha com abas enormes e imensos óculos escuros ao sair para almoçar e ao voltar para casa, ao fim do expediente. Andava pelas ruas com o chapéu enterrado na cabeça, como um mexicano fazendo a siesta. Quase não enxergava o quem lhe vinha de encontro nem o que ao de encontro ia; mais de uma vez dera cabeçada em poste, chutara lata de lixo e pisara em rabo de cachorro que dormia na calçada. Tinha hematomas a lhe atestarem a dificuldades de comunicação entre os pés e o caminho mas não abandonava os acessórios. Só quando vieram o inverno e a chuva é que os colegas de Dona Conceição começaram a se preocupar com aquele excesso de proteção solar. Interpelada, ela explicou que era por causa de Seu Sebastião, cuja aposentadoria por idade fora por ela indeferida e, ele, que não se conformava com o fato, entrara com recurso e agora vinha todos os dias à agência a exigir uma resposta que não dependia dela e a cobrar direitos que não possuía.
Não suportando mais tanto assédio Dona Conceição passou, a cada dia, a sugerir que ele direcionasse sua reclamação a um setor diferente; que se dirigisse diretamente à Junta de Recursos ou que fizesse uma queixa na Ouvidoria, finalmente opinou que ele devia se lamentar com a assistente social, do que imediatamente se arrependeu.
Dona Lúcia, a assistente social, não era má pessoa, tinha real interesse em ajudar os segurados embora sua tarefa fosse ajudar aqueles que não eram segurados do INSS pois seus trabalho dizia respeito aos benefícios assistenciais e não ao previdenciários; entretanto, tinha ela uma certa dificuldade de discernimento e fazia confusão entre ambos. Quando Dona Conceição a viu aproximar-se, cenho carregado e punho fechado, tentou colocar seu disfarce praiano, porém, foi pega com o chapéu na mão.
- Dona Conceição, como pôde a senhora fazer o que fez com o Seu Sebastião, um homem tão necessitado, idoso e, ainda por cima, muito doente – cobrou em voz alta e pouco social, a assistente social, levantando o punho cerrado na direção da servidora.
Dona Conceição tentou explicar que o senhor em questão tinha usufruído 18 anos de um auxílio doença que fora, findo este tempo, cessado por irregularidade e que viera agora, ao completar 65 anos, requerer a aposentadoria por idade e... Dona Lúcia a interrompeu: - Em 18 anos e ninguém regularizou o beneficiou desse pobre homem? É um total desleixo, uma incompetência imperdoável, permitir que uma pessoa tão necessitada fique à míngua por um erro de um servidor, isso é um crime..... E ia ela continuar seu discurso sem sentido se Dona Conceição não a interrompesse bruscamente: - Irregularidade, neste caso, senhora Dona Lúcia, significa fraude. E agora o Seu Sebastião, depois de receber ilicitamente um benefício durante 18 anos, quer aproveitar esse mesmo tempo para conseguir uma aposentadoria. Porém, lícito ou não, o tempo de auxilio doença não conta para carência*, portanto o Seu Sebastião não pode se aposentar porque não tem carência.
- Como não tem carência? Uma pessoa a quem falta tudo, não é carente? Que esteve doente durante 18 anos, que nunca pôde trabalhar, que tem como sobreviver e a senhora me diz que não tem carência?
Dona Lúcia, vítima de sinuosas e erráticas conexões neuronais, ou não entendia nada do que se dizia ou entendia tudo ao pé da letra, que é a outra forma de não entender nada.
- Mas não se preocupe, Dona Lúcia, que ele já entrou com recurso – tranqüilizou Dona Conceição, tentando encerrar a conversa.
- Recurso? E que recursos a senhora acha que ele tem para a senhora o extorquir desse jeito? A senhora ainda vai acabar na cadeia!
Dona Conceição não disse mais nada, saiu correndo e se enfurnou no banheiro. No dia seguinte estreou um disfarce diferente; subitamente convertida ao islamismo em sua vertente mais conservadora, tornou-se adepta do talibã e a passou a usar burca. Dona Lúcia, depois de alguns dias, vendo-a ali acomodada em sua mesa habitual, coberta dos pés à cabeça por aquele traje azul, olhos semi-ocultos por trás de uma tela, sentou-se ao seu lado e perguntou o seu nome. – Maria, respondeu Dona Conceição, disfarçando a voz.
- Então, Dona Maria, a senhora tem visto a Dona Conceição?
- Não- respondeu a voz adulterada.
- Pois não é que ela sumiu? A senhora, muito provavelmente, não imagina o que a Dona Conceição tem feito a essas pobres pessoas que aqui freqüentam... – e ficou meia hora a discursar lamentos nos ouvidos de Dona Conceição.
Certo dia, Dona Conceição, estando abafada por baixo de todo aquele pano, foi para a retaguarda refrescar-se um pouco. Mal levantou a burca e entrou a insistente assistente social, que lhe gritou:
- Finalmente a senhora resolveu aparecer! Pois saiba que, enquanto a senhora passeia por aí, o Seu Sebastião morre de fome... – e tanto falou que Dona Conceição nem se animou a responder. Irritada, vestiu outra vez a sua burca e voltou para sua mesa. Mal sentou e lá veio Dona Lúcia, que lhe disse, em voz baixa e lamentosa:
- É, Dona Maria, a senhora é a única por aqui que me compreende...
Enquanto isso o Seu Sebastião, percorria, com olhar frustrado, os quatro cantos da agência tentando encontrar a Dona Conceição...
*não contava........blog defasado.................
*não contava........blog defasado.................